O GUARDIÃO DOS ANCESTRAIS
Domingo, 23 de Junho de 2019, 07h:51 | Atualizado: 23/06/2019, 17h:20
Quilombo faz vassouras com "axé" para lavar escadaria da São Benedito - entenda
Vinícius Bruno - Fotografia: José Medeiros
Enviados especiais à comunidade Mata Cavalo
Mantenedor de tradições seculares vividas dentro do quilombo Mato Cavalo, Nezinho fabrica artesanalmente vassouras feitas com a palha de Ariri, uma espécie de palmeira. Neste ano, a Comissão da Lavagem das Escadarias de São Benedito irá utilizar 27 vassouras confeccionadas pelo pai de santo para lavar a escadaria da igreja construída por escravizados e dedicada ao santo negro.
José Medeiros

São Benedito, que aparece ao lado de N. Senhora Aparecida, ganhou importância na Umbanda por representar os pretos velhos. Vassoura lavará escadaria
Nezinho explica que a vassoura tem o diferencial por possuir o que chama de “axé” que, na visão do religioso, trata-se de uma energia que vem da natureza e conecta o instrumento às divindades cultuadas pela Umbanda.
“Isso é dos ancestrais, vem da antiguidade e espanta os males, as energias negativas contra a casa e contra as pessoas. É uma vassoura de defesa e proteção”
Maria JoséA mãe de santo, Maria José, que preside a Comissão, explica que a vassoura de Ariri pode ser usada para fazer limpeza de casa, quintal ou uma limpeza espiritual atribuída de “sacodimento”, que consiste em bater o instrumento nos cantos da casa na primeira sexta de cada mês com forma de espantar as energias negativas. A religiosa também ensina que é possível preparar um banho com três galhos da vassoura, que devem ser cozidos em água e serve para retirar as perturbações de espíritos negativos.
“Isso é dos ancestrais, vem da antiguidade e espanta os males, as energias negativas contra a casa e contra as pessoas. É uma vassoura de defesa e proteção. Como é utilizada todos os dias, possui uma energia e todos os dias se retira o mal. Essa é a vassoura que queremos levar para a lavagem das escadarias porque é a verdadeira vassoura”.
Sábado (29) será realizada a 3ª edição da Lavagem das Escadarias da Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, em Cuiabá. Neste ano, o tema será Fraternidade, Caminho de Luz, Axé! Ao todo, 27 mães de santo vão carregar as chamadas quartinhas, que são vasos sagrados que levarão água preparada com rosas e essência de laranjeira, o que garantirá mais axé para a lavagem. Outras 27 pessoas manusearão as vassouras.
José Medeiros

Fumando o seu tradicional cachimbo, Nezinho, ao lado de Maria José, fabrica uma das vassouras que será usada na lavagem das escadarias da São Benedito
“Enquanto estão tirando a festa da igreja de São Benedito, nós estamos trazendo a ancestralidade de volta para a lavagem da escadaria”, avalia mãe Maria, para quem a lavagem tem o simbolismo de lutar para combater os preconceitos contra negros, povos de terreiros e LGBT+.
“Estamos pedindo paz e fraternidade, que consiste em dar as mãos uns aos outros”
Maria José“A lavagem é para tirar a intolerância. O preconceito começa dentro das famílias. Falta união. Na Umbanda, Deus é de todos. Estamos pedindo paz e fraternidade, que consiste em dar as mãos uns aos outros”, complementa.
Festa de São Benedito
São Benedito é um santo católico que viveu na Itália nos anos de 1500. Filho de pais nascidos na Etiópia, na África, que viveram como escravos, Benedito teve o benefício de não ser escravizado, e viveu como eremita, uma modalidade de vida religiosa marcada pela pobreza e austeridade, até que entrou no convento dos freis capuchinhos, tornando-se um religioso exemplar. Após sua morte foi canonizado ganhando o título de Santo, e sua devoção chegou ao Brasil junto com os imigrantes católicos.
José Medeiros

José Medeiros

Na casa de Pai Nezinho, São Benedito está em todo canto. A devoção começou com o avô, Marcelino, que foi escravo alforriado e fundador do quilombo
No período da escravidão, Benedito foi um dos santos católicos que foram sincretizados com as deidades africanas. Os negros, para praticar o culto aos Orixás, Nkisses de Voduns, sem que fossem perseguidos pelos senhores brancos católicos, passaram a atribuir suas deidades aos santos. Benedito foi sincretizado em alguns lugares com Ossaim, que para os Yorubas é o Deus das ervas sagradas.
Na Umbanda, São Benedito também ganhou importância, por ser negro e por representar os pretos velhos, que são os espíritos dos escravizados que após a morte passaram a trabalhar no plano espiritual e no plano material por meio da incorporação em médiuns, administrando curas, bençãos e conselhos espirituais.
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Mãe de santo Maria José ao lado de pai Nezinho. Ela destaca o retorno da ancestralidade na lavagem da escadaria da Igreja de São Benedito, em Cuiabá
Em Cuiabá, a Festa de São Benedito é realizada desde o século 18, e se tornou a maior festa religiosa popular da cidade. No quilombo Mata Cavalo, Nezinho também realiza sua tradicional festa dedicada ao santo negro. Iniciada pelo seu bisavô Marcelino Paes de Barros, o pai de santo não sabe informar quando começou a tradição em sua casa, mas sob sua responsabilidade já é realizada há 50 anos.
José Medeiros

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Há 2 roças de arroz. Alimento colhido por Nezinho e seus seguidores é preparado para festejos de São Benedito. Cerca de 100 kg são preparados para festa
“Eu fiquei tão triste que quase não realizei minha festa”
Pai NezinhoNo sítio, Nezinho mantém duas roças para o plantio de arroz. A primeira é dedicada exclusivamente à produção do arroz que é servido na festa de São Benedito, em julho. Cerca de 100 kg de arroz são preparados no principal dia do festejo. Em outra roça, o pai de santo produz seu sustento e planta arroz, cana-de-açúcar, milho, mandioca e banana.
Neste ano, a organização da festa em Cuiabá decidiu fazer os festejos no Centro de Eventos do Pantanal. E a decisão tem intrigado a comunidade quilombola. Nezinho relata que é uma “tristeza” a festa na Capital não ser mais na igreja dedicada ao santo.
“Para nós é a festa principal. Eu fiquei tão triste que quase não realizei minha festa”. O quilombola defende que o verdadeiro sentido do festejo, além de homenagear o santo, é alimentar o povo, já que Benedito foi cozinheiro no convento.
Reprodução

Lavagem das escadarias da Igreja São Benedito acontecerá pela terceira vez. Neste ano, serão usadas vassouras produzidas por descendentes de escravos
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Comentários (1)
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Fabiana | Domingo, 23 de Junho de 2019, 17h2113
Só o Senhor é Deus .....
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